quarta-feira, 25 de abril de 2012

Crónica de um lugar mal escolhido

Entras no autocarro já com a noção de que não está nem metade cheio. "Boa!" pensas tu, "assim estou à vontade". A parte direita do autocarro (da perspectiva de quem entra) tem os assentos para uma só pessoa. Olhas para o primeiro, vazio, provavelmente a melhor escolha dada a vista privilegiada. Mas tu mereces mais e podes dar-te ao luxo de ocupar dois lugares, a mala e o casaco ao lado dão sempre um conforto especial que por alguma razão desconhecida os assentos abandonados do lado direito não dão. Passada a decisão rápida de não ficar pelo primeiro assento decides avançar. Os passos são largos, fortes e decididos e a análise é feita numa questão de microsegundos. A troca de olhares entre ti e os restantes passageiros é tão curta que mal te apercebes se há ou não um lugar perfeito por ali. É o íman, é sempre o íman. O íman invisível e estúpido que te lixa sempre as viagens. O íman que te compele vigorosamente a ir para a parte traseira do autocarro e que te impede de teres uma viagem ligeiramente mais agradável.
Sentas-te praticamente ao final, atrás de duas senhoras que vão a descansar os olhos, sinónimo de um simples "estar a dormir" e frase sempre usada pela tia que tem problemas conjugais com a verdade. Reparas que as senhoras são duas lésbicas gordinhas, de meia idade, e que a da esquerda acaricia com movimentos constantes os pés da amante que ressona baixinho. Pensas imediatamente em mudar de lugar mas não o fazes. Parece que há sempre alguma coisa que te impede, uma vergonha, um medo qualquer. É como se fosse um crime pelo qual terás de pagar mais tarde.
Pegas no jornal Marca que compraste hoje pela primeira vez e que já tinhas começado a ler na estação e pensas que está tudo bem. Hoje não tens a companhia dos Dire Straits, os aparelhos tecnológicos teimam em tramar-te a vida quando precisas deles, mesmo que isso seja pouco frequente. Tudo bem na mesma. Hoje é dia de Mourinho e Ronaldo e poucos adeptos madrileños terão mais do que isso na cabeça. És do Benfica e não estás particularmente entusiasmada com o jogo mas apeteceu-te escrever isto.
Apercebes-te que a acariciadora profissional de pés se lança sobre a sua bela adormecida gordinha e colocas o jornal à frente, estrategicamente, como quem não quer a coisa. Discrição é uma das tuas virtudes. Não que conte muito para ti ou para as senhoras que dão um beijo apaixonado mesmo nas tuas barbas mas gostas de manter a postura. Não tens qualquer problema com homossexuais, farias o mesmo com um casal hetero. Ou com um casal de gays gordinhos de meia idade.
Separam-se finalmente e voltam a dormir. A que está à tua frente volta a ressonar, agora com bastante mais força, e não percebes como é que alguém consegue adormecer quase instantaneamente. Talvez porque bebeste uma bica em Badajoz. Sim, uma bica... e das boas. Mas não conseguem nunca ser melhor do que as nossas.
Despachas as partes do Real e do Barcelona, que ocupam metade do jornal, e páras de ler. Finalmente conseguiste ler durante um bom bocado sem que aparecesse aquela companheira chata que muitas vezes dá o ar da sua graça: a dor de cabeça.
Dás-te então conta que já há vários minutos que o vizinho de trás te está a incomodar com as pernas quando nem sequer tens o assento mais para trás. Perguntas-te se não será apenas uma partida da tua imaginação mas tens vontade de olhar para ele e começar com o "oh amigo, desculpe lá..." que tanto gostas de usar mas que raramente pões em prática. Provavelmente teria de ser em espanhol e não te apetece, muito menos quando já estás em terras lusas.
Lembras-te de uma viagem Lisboa - Badajoz em que um indiano estranho, num autocarro praticamente vazio, passou três horas a olhar para ti desde os assentos ao lado. Claro que mantiveste a postura e não olhaste uma única vez. Mas aí tinhas os Dire Straits e estavas, como sempre, completamente focada em tão magistral pedaço de arte musical. Aí dormitaste várias vezes, não tinhas bebido café. Pelo menos não do ponto de vista português já que do espanhol tinhas bebido café ao pequeno-almoço (ver post anterior).
Já pensaste em mudar de lugar umas boas dez vezes mas continuas na cepa torta mesmo enquanto a senhora continua a ressonar, cada vez mais sonoramente e com uma ligeira junção ao som daquilo que deve ser a sua saliva a saltitar algures entre o nariz e a boca. E com o assento praticamente em cima de ti. Enoja-te um bocadinho.
Falta uma hora de viagem quando finalmente mudas de lugar e voltas ao jornal. O lugar solitário acabou por se tornar bem mais confortável do que os outros. Mais uma prova de que tudo depende da perspectiva.
É precisamente nessa altura que começa a chover algures no Alto Alentejo. Não percebes se é questão de sorte, se todos os viajantes de autocarro são estranhos ou se és tu que escolhes sempre mal o lugar mas sorris. É mais uma viagem que não custa a passar, já estás habituada. E estás a chegar à tua Lisboa.
Voltas a sorrir.

3 comentários:

  1. Olá Marta, segui o teu conselho e vim cá espreitar, só tenho a dizer duas coisas: Gostei do relato da viagem e a culpa é do café, já percebeste porque não bebo café? ;)

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  2. Conseguiste prender-me durante 5 minutos com a tua escrita... Muito, muito bom! :)

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  3. Como frequentadora assídua dos autocarros, também vou encontrando umas pérolas. Eu, infelizmente, atraio pessoas que não sabem tossir ou espirrar de forma educada! Já me aconteceu sair umas paragens antes e fazer o caminho a pé, porque de facto levar com essas coisas incomoda-me!

    PS - Escreves muito bem!

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